terça-feira, setembro 04, 2007

Acabei de ler um texto lindo na Folha de S. Paulo. Tem muito a ver comigo, com o que eu penso. Como é só para assinantes, eu não resisti e vou colocá-lo aqui. O link, pra quem quiser e for assinante, é esse.

RUBEM ALVES

Nunca te vi, sempre te amei...

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Amigos não se fazem. São descobertos. Como ocorreu com minha amizade com o monsenhor Luna, do Equador
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DENTRO DA CRATERA de um vulcão extinto há 500 milhões de anos, no alto de uma montanha de Minas de onde se vê muito longe, eu planto árvores para meus amigos mortos e para meus amigos que vão morrer.
Para o meu amigo Ladon Sheats plantei uma árvore que se chama "liquidambar". A pequena muda cresceu muito e hoje é uma árvore com mais de seis metros de altura.
O estranho nessa amizade é que nós nunca nos vimos. Ouvi sua voz uma vez apenas, ao telefone. Eu estava nos EUA e o chamei de um telefone público. Conversamos. Eu, livre para voar e para ir para aonde eu quisesse. Ele, pássaro engaiolado cumprindo pena numa prisão.

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Amigos não se fazem. Amigos são descobertos. Como aconteceu com minha amizade com o monsenhor Luna, do Equador. Ao vê-lo pela primeira vez, tive a impressão de estar diante do Pequeno Príncipe. Tinha uma cara de criança e cabelos encaracolados. Mas bastou que estivéssemos juntos por poucos minutos para que percebêssemos que já nos conhecíamos há muitos anos sem nunca termos nos encontrado.

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Depois, a amizade com o Guido Ivan de Carvalho, contratado como procurador pela direção da Unicamp como arma contra a oposição. Eu era da oposição. A despeito disso a amizade aconteceu. Era mais moço do que eu. Mas o câncer não leva em conta a idade. A presença da morte mudou o tom das conversas. Quis saber como fora a sua juventude.
"Guido, onde foi que você passou sua adolescência?"
"No Rio", ele respondeu.
Eu também passara minha adolescência no Rio...
Continuei: "Em que bairro?"
"Botafogo."
Eu também morara em Botafogo.
"Em que rua?"
"Rua da Passagem", ele disse.
Eu também morara naquela rua.
E então, a última pergunta:
"Qual era o número da sua casa?"
"34."
Eu morara no 35...
Essa coincidência é praticamente impossível de acontecer a menos que os deuses amarrem os amigos com fios do lado do avesso da vida. Plantei para o Guido um ipê branco. Já floresceu várias vezes.

*

Agosto de 1976. Chega-me dos EUA um bilhete numa folha de bloco cortada ao meio: "Caro Rubem Alves: seus pensamentos no livro "Tomorrow's Child" têm tido uma profunda influência sobre a minha vida. A sua capacidade de sintetizar... A clareza com que você se exprime são dons muito bonitos. Por isso sou-lhe muito agradecido. Afetuosamente, Ladon Sheats". O signatário não dizia quem era. Fiquei com o bilhete na mão, sem saber o que pensar. Dias depois recebi carta de um amigo com as explicações.
"Esse bilhete foi escrito de uma prisão em Alexandria. Ladon Sheats está cumprindo uma sentença por haver participado de uma demonstração contra as armas nucleares acontecida no Pentágono."
Pondo em ordem minhas velharias, aquele bilhete voltou-me às mãos. Gesto de amizade de um homem encarcerado. Encarcerado porque fora fiel à sua consciência. Minhas mãos tocaram aquele bilhete como se fosse uma coisa sagrada. O prisioneiro me escrevia só para dizer "obrigado" por um livro que eu escrevera. Mas ao escrevê-lo jamais poderia imaginar que ele, o livro, iria para a prisão. Ele, o prisioneiro, havia levado a sério o que eu escrevera, mais do que eu mesmo. Mas quem era esse homem? Depois eu conto...

Um comentário:

Anônimo disse...

Rubem Alves é sempre tão tocante... obrigada por ter colocado o texto aqui.