terça-feira, novembro 14, 2006

Eu amo esse texto. AMO. Desde que li, ele não sai mais da minha cabeça. Vira e mexe, eu lembro dele. Acho fantástico, charmoso, criativo, tudo. E resolvi postar aqui pra eu não perder. Porque depois dele, eu nunca mais encarei um espelho da mesma maneira. O autor é esse cara super duper aqui.

a alma dos espelhos

“Não, esse não. Tapa demais o teu colo. Que tal o azul?”
–– Credo, como eu fico gorda nesse vestido. Saco.

Ela tira o vestido e joga sobre a cama, onde já repousam meia dúzia de peças de roupa testadas e reprovadas. Vai em direção ao armário e começa tudo de novo.

“O azul. O azul!”

Puxa um vermelho, de alças largas. Coloca-o na frente do corpo e solta um muxoxo de reprovação.

“Não inventa! Pega logo o vestido azul, vai...”

Agarra o vestido azul, tira do cabide, deixa que ele deslize pelo corpo. Observa-se no espelho.

“Isso... nossa, esse vestido fica perfeito em ti. Olha como ele delineia bem os teus seios... E essa fenda, hein? Uau! É esse. Vai por mim!”

–– É, acho que esse aqui tá bom...

Alguns de nós não acreditam que as almas existam. Esses céticos pensam que somos regidos unicamente por nossos cérebros, e que, quando morremos, nada sobra além do corpo que repousa em algum cemitério ou foi cremado. Ledo engano. As almas existem, sim, e isso não se discute. Resolvida (de maneira prática) essa questão, a próxima é: e para onde vão as almas quando perecemos? Não faltam crenças e teorias religiosas: católicos, espíritas, hindus... E quem mais se aproxima da verdade é a reencarnação dos budistas. Só que, diferente do que eles julgam – voltamos em humanos ou animais –, nossas almas ficam em objetos muito mais prosaicos e corriqueiros. Como, por exemplo, os espelhos.

–– Cabelo preso ou solto? Ai, tá tão cheio de pontas duplas...
“Bobagem, bobagem! Deixa solto!”
–– É. Solto não vai dar. Vai ter que ser preso, mesmo. Saco...

Bem, nem todas as almas ficam em espelhos. Dentro dele, descobri dia desses, ficam os espíritos dos homens que foram muito mulherengos em vida. Galinhas, infiéis, casanovas e conquistadores incorrigíveis encontram seu pós-vida aprisionados num local de onde podem observar intimamente belas mulheres – mas, oh supremo castigo, não podem tocá-las.

“Faz aquele rabo de cavalo, então... Mostrando teu pescoço...”
–– Mas prender como? Um coque?
“Não! Coque não!”
Os espelhos com mais experiência conseguem interferir na vida das mulheres. Eles emitem mensagens telepáticas que funcionam como um sugestionamento subliminar. Não, você não fica gorda naquele vestido: seu espelho é que não gosta da cor.
“Viu? Viu que feia que tu ficou de coque? Faz um rabinho, pô!”
Ela vira de lado, de perfil para o espelho, para enxergar melhor o cabelo. Irritada, solta-o e começa a escová-lo, já sem muita paciência.
–– Esse cabelo tá um nojo, não sei mais o que fazer! Falei pro Jessé que não era pra ele repicar! Ficou uma bosta! Vou perguntar pra Glorinha onde ela anda cortando os cabelos...
Larga a escova na cama e puxa os cabelos para trás da cabeça, simulando o rabo de cavalo.

“Tô dizendo que fica bonito...”
–– Droga. Vou prender num rabo, mesmo...

Assim como os homens, o mesmo acontece com as mulheres. Tudo depende do nível de galinhagem e infidelidade em vida. Ninfomaníacas têm como destino espelhos de corpo inteiro de homens como o Zulu, o Gianecchini, o Mel Gibson e outros bonitões. Já os mulherengos têm a chance única de ver Cameron Diaz, Luana Piovani e até a Sandy peladinhas, peladinhas. Mas é só o que eles podem fazer. Olhar.

“Agora sim... cê fica muito charmosa assim... delícia... se eu pudesse sair daqui, eu juro que...”
–– Perfume, perfume... deixavê... esse aqui.
A campainha toca. Ela pega a bolsa de cima da cama bagunçada e joga o batom que acabou de usar dentro dela. Sai do quarto, gloriando.

“Não, não vai! Volta aqui, pô! Deixa eu te olhar mais um pouquinho... Ei, a tua sombra tá borrada! Vem cá! Ah, que inferno...”

Você pode estar se perguntando para onde vão as almas dos outros - homens e mulheres que jogaram limpo e se mantiveram na linha durante a vida. Eu não sei, mas tenho um palpite: pra roupa íntima das pessoas mais sensuais do mundo. Deve haver algum tipo de equilíbrio, certo? E até dá pra imaginar as brigas que o espelho tem com a gaveta de calcinhas...
“Não! Não bota essa preta! A preta não!”
“Cala a boca, ô recalcado! Fica frio aí, manézão! Isso, meu bem, hoje é a preta...”
“Droga! Droga! Não bota essa aí! Sai sem calcinha hoje! Já pensou, hein? Que delícia?”
“Rárárá, otário! Oooh... gatinha, você se depilou! Hmmm....”
“Cala a boca! Eu te odeio! Me tira daqui! Aaah!”

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